Interessante é que nenhum dos dois chamava a atenção, só o atirado das pastilhas Fresh é que recebia alguns olhares mais despretensiosos. Num rebento, o vendedor de chocolate arreia calmamente as caixas ao chão, no meio do vagão, e solta seu repertório: "Chocolate é a cinquenta! Chocolate de setenta por cinquenta é só aqui. Lá fora é mais caro, viu? Quem não pediu PIDA logo, porque PEÇA é de carro. E esse não quebra na chuva!!!" Imediatamente os despretensiosos olhares voltaram-se cheios de interesse para aquele rapaz. Em meio a esse e outros trocadilhos linguísticos cheios de pretensão de vender mais, o esperto do chocolate foi arrebatando sorrisos e moedas de R$ 0,50 e R$ 1,00 para encher seus bolsos.
Ao presenciar tal feito, um conhecedor das minúcias linguísiticas de nosso idioma chegou a se assustar, quando ouviu o PIDA pronunciado por uma pessoa adulta. É mesmo desinteressante e triste que alguém tenha um nível de semi-analfabetismo tão evidente a ponto de falar a conjugação PIDA. Acontece que esse susto durou frações de segundos, porquanto o rapaz do chocolate tenha demonstrado rapidamente e claramente que se tratava de um trocadilho intencional para ganhar a atenção dos passageiros do metrô.
Ora, o especialista logo se voltou à fala da criança, que no processo de aquisição da linguagem, sofre com as irregularidades da língua. É comum ver os pequenos pronunciarem verbetes como: PIDA, FAZI, FAZO, SABO, PODO e outros. E cito apenas esses exemplos de irregularidade verbal das crianças, porque se for entrar naquelas que pregam "peças" nos adultos, como as conjugações de COMPETIR, FALIR e ADEQUAR, nosso argumento ganha força logo de início. Contudo, vou ganhar sua opinião, amigo leitor, um pouco mais à frente. Voltemos à criança, pois.
Os pequenos não conseguem compreender porque o verbo é FAZER e eles não podem dizer FAZO, quando o podem fazer com BATER - BATO. A própria gramática normativa, prescritiva, trata de assumir que estamos diante de verbos irregulares, cujos radicais sofrem alterações diante de determinadas conjugações. Existem também os defectivos e anômalos, que passam despercebidos pelas crianças, que dizem, por exemplo, "eu era" e nunca "eu sera" - e o verbo é SER, viu?. Tudo bem que esta forma não exista na língua padrão, mas FAZO existe por acaso? A questão é lógica, então, nobre leitor! As crianças não inventam a língua; apenas são submetidas a ela. São forçadas a aprenderem, se quiserem comunicar-se com os adultos. Para elas, portanto, se se pode dizer BATER - BATO, então é lógico que também se possa dizer FAZER - FAZO, DIZER - DIZO, SABER - SABO. E PIDA seria só uma questão de coerência, sob a ótica da criança; mas para um vendedor adulto... É marketing!!!
Entretanto, a língua portuguesa tem lá suas incoerências, suas irregularidades particulares, às quais devemos nos ater, aprendê-las e, quiça, com elas brincar, tal como o vendedor de chocolate. Para ele tiro o chapéu e lhe dou o título de mestre, vez que o mesmo soube como poucos ambulantes dentro de coletivo - olha que irônico! - ganhar a atenção de pessoas paradas, cansadas de viagem, talvez esfomeadas. O rapaz sabia bem o que estava fazendo. Se não era um analista de discurso, era um discursante bem competente! O uso do PIDA em vez de PEÇA teve nitidamente a intenção de brincar com nosso conhecimento linguístico, pois não nos deparamos com a conjugação irregular homônima ao substantivo ao qual de referia o sábio vendedor (PEÇA de carro). Foi, na verdade, uma piada muito bem pensada! Sem contar que estávamos todos no metrô!
Fico com a pureza da resposta da criança que me diz "FAZI, papai", sempre que pergunto se ela fez a tarefinha que a tia passou. Afinal, ela sabe o que fez; só não sabe, ainda, que existe outra forma de dizer. Fico também com a esperteza daquele vendedor de chocolate, que surpreendeu a muitos, demonstrando grande habilidade com a língua, pelo menos no que se refere à capacidade de com ela jogar. Aliás, piada é mesmo um jogo de linguagem. Fique, assim, amigo leitor, com a opinião de que a língua nos surpreende a cada momento em que nos deparamos com o uso incomum ao nosso reduzido léxico. Considere normal não saber conjugar LOCUPLETAR, APAZIGUAR, REQUERER, APRAZER, ROER, ARGUIR, SORTIR, CABER e EXAURIR, se não faz leituras nas quais se faça presente tais conjugações. Ganho sua opinião, caso esteja de acordo com a minha neste momento.
Sem querer brigar, dou-lhe um presente: um link http://linguistica.insite.com.br/cgi-bin/conjugue para que você vá direto ao ponto, à ferida, e confira aquelas conjugações que julga saber. Oxalá saiba mesmo, uma vez que signifique uma independência para você! Se não, bem vindo ao reino dos normais, pois o que se diz padrão está longe de sê-lo. Aliás, padrão é aquilo que serve de exemplo para a feitura de outros. Mas só se pode seguir exemplos que são dados. Se não lhe deram o exemplo de como conjugar PUIR, dificilmente você achará que essa palavra é padrão de algo. Ao menos o vendedor de chocolate sabia que não iria FALIR.
Robson Santiago
Oh! Que post educativo e inteligente hein... muito bom eu ter passado por aki, PARABÉNS! Bjaços @helenablll
ResponderExcluirPasse sempre por aqui, Helena!!!
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